porta entreaberta

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Localização: Viana do Castelo, Portugal

sexta-feira, junho 30, 2006

Navegador na madrugada

Entre tantos barcos adormecidos, ele não se inibe da aventura. Segura com garra a corda que o prende, para a desamarrar.

Porque o sol, vertido sobre as águas, reaparece ao cimo da montanha, o navegador, na madrugada, tem pressa de o buscar.

Noite iluminada


A noite, os barcos sobre as águas, o brilho e uma luz misteriosa...

quinta-feira, junho 29, 2006

A panela de cozinha

Ontem, à tardinha, vi uma panela (de cozinha). Deveria ser de tamanho 20.
O homem estava no separador central, enterrado na erva até aos joelhos. Ele agarrava a panela com uma mão em cada asa, e depois, já esta pousada sobre a barra metálica, ele olhava a via rápida como quem está atento a que o trânsito escasseie para atravessar as outras duas faixas do IC24.

Mas há atenuantes. Numa via rápida em obras, de traços amarelos confundidos, em noites chuvosas, por outros traços, os brancos mal apagados; de antigas barras sonoras mal retiradas e no meio do piso, cujo ruído que provoca, numa primeira experiência, nos faz pensar que o eixo das rodas do nosso carro acabou de partir; de faixas estreitadas que chegam ao ponto de bloquear uma ambulância em acção de socorro tentando esgueirar-se entre o trânsito; de aberturas fáceis e enganadoras, nos separadores laterais, que nos levam por uma estrada paralela, até a uma barreira de betão, mais lá à frente; de curvas improvisadas, pontes em construção, máquinas em movimento e constantes alterações no circuito; numa via rápida com todos estes ingredientes, existir a possibilidade de nos aparecer uma homem à nossa frente com uma panela na mão, tamanho 20, nem é assim tão assustador.

Linha de Apoio

A propósito da viagem de comboio, acontece, mais ou menos assim, com um amigo meu, no dia seguinte à edição do referido texto:
- Olha lá, não percebi o texto que escreveste. Até tenho percebido todos, mas...
(- Ups! "até..."? Que quererá isto dizer?!)
- Mas, este último não percebi. Não consegui pegar o fio da história, não sei onde querias chegar…
E para concluir:
- Tens que criar uma Linha de Apoio aos ineptos.
- (Ai a ironia!) Sim, sim, CC. Vou já tratar da Linha de Apoio!!! …

Fiquei abalada. Mas também sei que, mesmo por vezes parecendo, não me vou emendar.

quarta-feira, junho 28, 2006

Centímetros de distância

Recorda as suas calças de sarja cor amarelo pálido.
Na camioneta, ela sentou-se junto da janela. Ele seguiu-a e sentou-se no lugar ao lado, junto do corredor.
Existiu um primeiro roçar. Pensou-o acidental. Depois foi mais que um roçar, foi um encosto e depois um encosto mais persistente.
- Importa-se de me dar espaço?! Sua perna está a pressionar a minha!
Homem de talvez 45 anos, rosto esguio, alto e magro e de pele muito branca, com pouco cabelo e umas inesquecíveis calças de sarja cor amarelo pálido.
Uma camioneta expresso, numa viagem iniciada a alguns minutos, a algumas horas do seu destino. Os lugares estavam todos ocupados.
Sim, ele desviou a perna, mas os centímetros que os separavam, naquele par de bancos, eram, desde então, insuficientes para ela, enquanto que as horas que a levariam ao destino, eram largas.

terça-feira, junho 27, 2006

Viagem de comboio

O comboio trespassa o cenário irregular. Há uma aparente oscilação no seu andamento, simultânea ao seu percurso coleante. As rodas enrolam através dos carris. E nós imaginamos o apito a soprar e o vapor branco a volitar da chaminé, o vapor da máquina que o move. Só que este comboio não é tradicional. Mas nós imagina-mo-lo assim. A viagem será demorada e nós conversamos, lemos algumas páginas do romance prometido e por fim dormitamos um pouco. Quando acordas, eu também acordo contigo.
A senhora, que está ao nosso lado, pensa -porque nós, assim esbeirados, conseguimos ler seus pensamentos – ela pensa na nossa forma solta de estar, publicamente. Aquela mesma mulher que, há pedaço, rezingava com um fulano por causa da cesta que ela trazia e da pouca disponibilidade dele para a aconchegar, à cesta, contra as paredes da carruagem, para não estorvar os restantes passageiros.
Levantas-te e vais até à porta, para alongares as tuas pernas. Olhas a paisagem e vês, por causa dela, o vidro sujo. A rapidez do andamento do comboio faz-te perceber, na paisagem, riscos horizontais, largos e verdes, colados entre si, e quando ele abranda, próximo do apeadeiro, os riscos se transformam e agora já não são verdes, largos e horizontais, já não são riscos sequer. São prédios brancos e prédios amarelos e carros pretos e carros vermelhos e uma fábrica cinzenta e lá mais longe, o telhado de uma capela, de uma cor torrada, e ouves o sino tocar, e eu, através de ti, também ouço o sino tocar e, porque para mim és transparente, vejo os prédios, os carros, a fábrica e o telhado da capela.
E entretanto, porque estamos tão esbeirados, já não somos nós mas sim os pés de lebre que decidem sobre para onde vamos. E porque estamos os dois, não nos importamos com a direcção do comboio.

sexta-feira, junho 23, 2006

A Segunda Cidade


A segunda cidade, a minha segunda cidade,
aquela que me acolheu durante estes
últimos quatro anos. Quatro anos e trinta e seis dias.
Namoramos diariamente, e muito raramente vemo-nos ao fim-de-semana. Apesar de alguma rebeldia mútua a este namoro, gosto do S. João na marginal do Rio, da Foz, do Cruzeiro no Douro, das saborosas francesinhas.
E existem, especialmente, as pessoas. Algumas pessoas que pertencem a esta cidade muito mais que eu e que a partilharam e partilham comigo.
Não sei se irá permanecer muito mais tempo esta relação, mas já faz parte da minha história.

quarta-feira, junho 21, 2006

Madrugada na minha cidade

O ar ainda fumega candidamente na zona baixa da minha pequena cidade. Mas a altíssima senhora, com rosto de pedra talhada e vestido verde denso, baloiça seus brincos de bronze. Os badalos ganham outro ímpeto na madrugada e os olhos das casas começam a abrir suas pestanas, aqui e acolá.

sábado, junho 17, 2006

Uma forma de despertar

O melhor despertar para um sono inacabado e de horas adulteradas será, porventura, um berbequim e uma pedra cheia de garra que, persistente, oferece resistência ao primeiro. Um silêncio corrompido, numa manhã de sábado.

terça-feira, junho 13, 2006

Uma noite na eira

A lua cheia. A noite quente. Na eira, estamos deitados sobre o feno que de dia estivera estirado ao sol e agora esta amontoado. Deitados de papo para o ar, sob o céu picado de luzes pequenas. Estamos a olhá-lo, fascinados. Passamos assim a noite inteira, porque nos disseram que esta era uma noite única, irrepetível. Cometas rasgando o tecto, deixando, durante algum tempo, seu rasto de fogo. Recordação de uma cama rural, do aroma dos pinheiros ao redor e da brisa da noite, tudo para contemplar o encanto deste fogo distante, que não voltará a sobrevoar-nos, assim, nesta dimensão, em toda nossa infância, em toda a nossa vida.

sábado, junho 10, 2006

Aperto de mão

Apertaram-me a mão. Não uma aperto suave, como quem sente ternura. Não um aperto robusto, como quem nos impele ao ânimo. Não um aperto por pontas, como quem está a perder um tempo seu. Mas um aperto comprimido, que amolga os dedos uns contra os outros e faz sentir os nódulos dos nossos ossos se machucarem mutuamente. Um aperto de mão como quem, silenciosamente, faz uma ameaça.

terça-feira, junho 06, 2006

"Estou, sou eu"

Oiço meu telemóvel tocar e atendo-o. Do outro lado dizem, ao meu primeiro sim, "estou, sou eu". Há uma dúvida que habita desde logo meu pensamento. Percorro mentalmente a minha lista telefónica a tentar descobrir algum eu, mas só eu sou eu, e mais ninguém.

sexta-feira, junho 02, 2006

A serenata do melro

O avião aterrou. Cheguei, pousei as malas, e fui dormir um sono último, até ao despertar.
Entretanto, às cinco da manhã, um melro passeou-se sob o parapeito da janela do quarto. Debicou insistentemente as ervilhas plantadas na horta (crime desnudado pela manhã), e depois cantou. Um melro de penugem preta e de bico amarelo. E sei que era um melro de penugem preta e de bico amarelo, não porque tenha visto o preto tão perfeito da sua penugem ou a amarelo tão garrido do seu bico, na noite vagamente alumiada pelo candeeiro frouxo, mas porque só os melros de penugem preta e de bico amarelo cantam. O mesmo é dizer que só os machos cantam.
Não sei se fique furiosa por ele me acordar às cinco da manhã, não sei se fique lisonjeada pela linda serenata…