Viagem de comboio
O comboio trespassa o cenário irregular. Há uma aparente oscilação no seu andamento, simultânea ao seu percurso coleante. As rodas enrolam através dos carris. E nós imaginamos o apito a soprar e o vapor branco a volitar da chaminé, o vapor da máquina que o move. Só que este comboio não é tradicional. Mas nós imagina-mo-lo assim. A viagem será demorada e nós conversamos, lemos algumas páginas do romance prometido e por fim dormitamos um pouco. Quando acordas, eu também acordo contigo.
A senhora, que está ao nosso lado, pensa -porque nós, assim esbeirados, conseguimos ler seus pensamentos – ela pensa na nossa forma solta de estar, publicamente. Aquela mesma mulher que, há pedaço, rezingava com um fulano por causa da cesta que ela trazia e da pouca disponibilidade dele para a aconchegar, à cesta, contra as paredes da carruagem, para não estorvar os restantes passageiros.
Levantas-te e vais até à porta, para alongares as tuas pernas. Olhas a paisagem e vês, por causa dela, o vidro sujo. A rapidez do andamento do comboio faz-te perceber, na paisagem, riscos horizontais, largos e verdes, colados entre si, e quando ele abranda, próximo do apeadeiro, os riscos se transformam e agora já não são verdes, largos e horizontais, já não são riscos sequer. São prédios brancos e prédios amarelos e carros pretos e carros vermelhos e uma fábrica cinzenta e lá mais longe, o telhado de uma capela, de uma cor torrada, e ouves o sino tocar, e eu, através de ti, também ouço o sino tocar e, porque para mim és transparente, vejo os prédios, os carros, a fábrica e o telhado da capela.
E entretanto, porque estamos tão esbeirados, já não somos nós mas sim os pés de lebre que decidem sobre para onde vamos. E porque estamos os dois, não nos importamos com a direcção do comboio.
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