porta entreaberta

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Localização: Viana do Castelo, Portugal

sábado, maio 13, 2006

Subversão canina?

Estamos na foz, a olhar o rio, espreitado também por uns bancos de madeira desbotados. Ali ao lado, a uns 200 metros à direita, ergue-se frouxamente uma casa esquelética, excluída e envergonhada, dejectando pedregulhos em ruína, atrás de si. No lado esquerdo, ignorando a casa podre, está um edifico envidraçado e muito espaçoso de ornatos airosos e plantas altas e viçosas na entrada, onde há lojas de comércio e espaços de entretenimento, com farta publicidade, ao cinema, à restauração e às piscinas, cravada na fachada principal, numa estética perfeita. Sob os nossos pés, que estão no encalço da escadaria do edifício envidraçado, o trilho entre a relva macia e verde, ladeada por uma pista para ciclistas. Ali atrás, perto da rua, um aglomerado de casas ambulantes ocupadas por estrangeiros que chegam para desfrutar as coisas bonitas do Norte de Portugal.
É neste cenário que, de repente, se vê um cão a correr com um objecto cravado nos seus dentes. E atrás dele um turista recém-chegado numa caravana, ao qual bastou sair à rua, descalçar a sandália por alguns segundos, para limpar qualquer coisa no pé, e logo ser perturbado por este intruso inesperado. O turista verga os 45 anos, e tem uns calções irrealistas, com umas cores às cambalhotas, que fazem trocar a vista, e uma camisola amarela. O turista fala e esbraceja, correndo meio destrambelhado atrás do cão. O cão faz intermitentes paragens, fugazes, nas quais se volta para o seu perseguidor, para medir a sua capacidade de alcance, que é muito fraca. Parece que ri com gozo e depois, nestas intermitentes viragens, faz também um olhar pasmado, intrigado com as palavras estrangeiras atiradas para o ar, pelo homem.
Mas a corrida do cão perde vantagem depois de uma destas fugazes paragens. Enquanto se relança, deixa cair a sandália sobre o chão pelo que retrocede um metro atrás, para o pegar novamente. Na pressão do momento não consegue agarrá-la com firmeza e ela volta a cair. Entretanto, nestes soluços de atitude o homem consegue ficar mais próximo. O homem que ao mesmo tempo olha para quem o observa, tentando se desculpar, mas sem palavras, pela sua patética corrida. E o cão, no seu olhar aguçado, já percebe o risco à sua segurança, a luta corpo a corpo, talvez, e as consequências. Até porque há a sua cadela e os seus cachorros, e os amigos das ossadas, e um mais não de uivados a chamarem por ele, certamente. Talvez por tudo isto, abandona a sua quase conquista, a sandália, sobre as ervas, e desaparece meteoro, entre as pedras descambadas da casa alienada.
Resta, agora, o homem profundamente destabilizado junto do objecto, o objecto que quase desacreditou ser capaz de alcançar. Pega nele, observa-o, virando-o em todos os seus perfis. Uma sandália impiedosamente cravada de furos. Salvou-a, mas certamente não mais será a mesma.
Depois deste episódio e depois do cão que se apoderou da passadeira, será de suspeitar de uma subversão canina?