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terça-feira, abril 25, 2006

As histórias de 1974

Censurar o que eu penso e quero dizer? Estar de pé, como estátua, horas a fio até negar minhas convicções, ou até revelar o que não há para revelar? Não poder escolher, entre vários, quem eu acho que pode fazer melhor por mim, pelos meus e pelos outros, no poder? Não vivi estas experiências, assim. Estou solidária, mas sei que a compreensão delas é diferente para mim, em relação a alguém que as viveu. Não fico, também, desagravada, de todo, dos constrangimentos à liberdade. Nos tempos contemporâneos também há mutilações. Outro tipo de mutilações, as sofisticadas.
Eu não estava cá em 1974. E eu sei que a História é, sempre, uma construção romanceada da verdadeira realidade. A História retratada na televisão, nos jornais, no filme ou documentário. Mas há ainda a acrescentar a história das pessoas que vivem, perto de nós, e que estavam cá.
Acho curioso saber o que sentem e pensam essas pessoas. Pessoas simples, que viviam preocupadas com o pão para se alimentarem, uma preocupação ininterrupta. Pessoas normais que não estiveram na ribalta mas comungaram da vida do país.
Foi por isso que andei à conversa. Marcelo Caetano estaria capaz de levar o país à democracia? A descolonização, um dos motivos do descontentamento dos militares da revolução, deveria ser feita mais compassadamente? Spínola saiu do seu cargo, de Comandante das Forças Armadas, por força de outros interesses menos claros? Viveram-se atropelamentos nos meses seguintes, até 1975? Apresentaram as nacionalizações, um reverso negativo, através dos seus privilegiados? Porquê a fuga de empreendedores, que assim não prosperaram no nosso país? Qual a real importância do 25 de Novembro, na estabilização necessária a que o golpe desse verdadeiros frutos? Estas foram as questões que surgiram nas conversas que tive, excluídos os factos que me apresentam na televisão.
Conheço uma história que aconteceu nos dias seguintes, ainda quentes, da revolução de 1974. Um sujeito entra num café. Tem uma expressão vaidosa e num jeito pomposo coloca os pés sobre a mesa, dizendo - Estamos na liberdade. Poderia ficar por aqui, mas, não tão simples, esta história conta mais. O dono do café faz-lhe um convite _Tire, se faz favor, os pés de cima da mesa do meu café. Ao que se segue um vozeirão ridiculamente confiante – agora há liberdade, sabia? Na sua euforia talvez tenha ingerido dose adulterada de liberdade. O dono do café, homem que os tinha no sítio, como dizem os sábios populares, diz – Pois bem, seja feito segundo o critério dessa tua liberdade. E acrescenta ao seu discurso um estalo bem forte na cara do agora desconcertado transeunte. Se ele tivesse assimilado a verdadeira liberdade perceberia que ela, a liberdade, é responsável.
Coisas essenciais se transformaram. Não há sombra de dúvida em relação à existência de amputação à boca das pessoas, nos tempos de outrora. Uma pessoa na sua vida quotidiana estava facilmente habilitada a ser requisitada para ‘outros fins’. Por falar o que só podia calar e, outras vezes, simplesmente por causa de uma inimizade com um informador, o qual lhe proporcionava, então, a estadia junto a quem de ‘direito’ o podia punir. Sim, estas são histórias que ouvi, desde nova, a pessoas da minha terra. São-me por isso familiares, como se eu as tivesse presenciado, talvez de esguelha.
A História da Humanidade, e a História do povo português, é feita de linhas irregulares, rectas e curvas, declives e elevações. É caso para dizer “vigiai e estais atentos”.