porta entreaberta

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Localização: Viana do Castelo, Portugal

terça-feira, julho 25, 2006

Ausente

Ele está sentado numa cadeira de palhinha. Seus olhos estão sobre o livro. Há ruídos diversos. Ao fundo trabalham os motores dos carros ligeiros, dos autocarros, das motos, cada um com o seu estilo. Soa a buzina do barco que vem do mar, entrando audacioso no rio. O comboio rola sobre os carris, atravessando a ponte. Mais perto de si, há o som das ondas empurradas pelo mar até ás margens do rio, das folhas que se mexem, pregadas por pontas aos galhos das árvores, e dos passos de gente a ritmos diferentes.
Mas os seus ouvidos estão ausentes. Para eles nada disto existe. E para os seus olhos existem apenas as letras pretas. Aliás, nem elas existem. O que existe, é um sítio atrás desta cortina de letras. É uma estrada de terra batida e são umas ervas louras, além altas e aqui aparadas. Ele caminha ao lado da mulher que tem uma saia rodada de cor preta, sobreposta por um avental. Esta mulher leva na cabeça, assente numa rodilha, um balaio de feira coberto por uma toalha de linho. Ele ainda não sabe o que ela carrega. Vão só os dois. Alguém diz coisas. Os pés da mulher estão sobre um socos de madeira, os calcanhares tem calos e sua pele está seca e gretada.
Entretanto, outra mulher aproxima-se com passos leves, nas suas sandálias de pele e tecido brilhante. Chega perto dele, toca-o com as suas mãos suaves, que tem uns dedos longos e as unhas pintadas de purpúreo, porque o quer trazer para junto de si.

terça-feira, julho 11, 2006

Garrafa da água

A garrafa da água está na mesa. A água não está morna e também não está quente. Mas apetece-nos que ela esteja mais fria do que ela está. É que há um sol atrás das persianas, muito luminoso na sua luz. Ele deixa a atmosfera, que está sobre a arena despida e loura, trémula de delírio. Seu porte sustenta um calor muito forte.
Um papel de diversos azuis está enrolado sobre o plástico lúcido da garrafa da água. É o azul mais claro no fundo do papel. São os azuis mais escuros mas diferentes entre si, na imitação da água, nas palavras ‘água mineral natural’ que estão escritas em quatro línguas, na descrição da composição química, no código de barras. É o azul no nome da água.
São 150 centilitros de água que servirão o nosso ritual. Os dedos cercam o corpo da garrafa, a tampa é desenroscada com meia volta, a garrafa é erguida, o seu gargalo é encostado aos nossos lábios, e a água é mergulhada na boca.
E depois? Depois queremos deixar cair a água para além das nossas bocas, queremos molhar o queixo, molhar o pescoço, e, quem sabe, molhar a camisa, as calças e as unhas dos pés. Uma cachoeira de água fresca, junto a umas rochas e às sombras húmidas das árvores.
Será um delírio? Não sabemos muito bem. Sabemos apenas que, quando voltamos a fechar a tampa em meia volta sobre o gargalo, tombamos sobre o cadeirão de estofos pretos, talvez vencidos pelas quatro paredes que nos rodeiam.