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quinta-feira, agosto 17, 2006

Sandálias

Eu disse-lhe que o som da palavra sandália era gracioso e os seus traços sobre o papel eram elegantes. E contei-lhe sobre o objecto, a sandália sedutora, a sandália humilde, a sandália guerreira.
Contei-lhe algumas histórias. Judite, com sua beleza, cativou a alma a Holofernes. Depois usou as sandálias que possuía para roubar o seu olhar e cortar a sua cabeça. Num tempo diferente e num outro lugar, no monte Horebe, Moisés tirou as suas sandálias e caminhou descalço até junto da sarça ardente. E, em Jerusalém, João Baptista não se achou digno de desatar as sandálias a Jesus. No mesmo tempo, o tempo de Jesus, as sandálias conseguiram ser iguais a um tesouro escondido, procurado pelos homens que encontraram Judas, enforcado, descalço e sem o dinheiro obtido em troca da traição. E o guerreiro romano desenhou na sola da sandália a figura do inimigo para depois a espezinhar no chão.
Perguntei-lhe se ele não conhecia aquela música, aquele livro e também aquele filme que continham, nos seus respectivos nomes, a sandália ou as sandálias. Ele disse-me que as sandálias têm múltiplas personalidades. E pediu-me que as calçasse.
Experimentei. Que força intrínseca labora, desde o rasto da sandália passando pela palmilha, as tiras, os laços, a presilha e entranhando-se nos pés através de cada pormenor – o calcanhar, os dedos, o tornozelo, a planta do pé – e reflectindo-se em toda a postura?
Experimentei uma sandália de sola de borracha grossa, com uma tira larga sobre a parte superior do pé e outra que nasce no calcanhar da sandália e dá a volta ao tornozelo, presa por fecho de velcro. Senti-me uma caminhante, deixei os pés se envolverem na poeira do trilho que percorri, sem o mínimo constrangimento, sem aquela delicadeza que se importuna com a pele escura da terra, com as unhas sujas da lama, e com todos os obstáculos próprios de um corta-mato.
Experimentei uma sandália de sola rasa e fina, em couro. Senti-me quase descalça, mas a base dos pés estava suavemente protegida e confortável. Tinha uma tira no dedo grande e duas tiras entrançadas que se agarravam àquela, no mesmo ponto. Seguiam até ao tornozelo e prendiam-se a uma lasca de pele que envolvia a parte de trás do pé, o calcanhar. Senti o pé tão leve como se calçasse as sandálias aladas de Perseu.
Experimentei uma sandália muito sofisticada. Com dois fios entrançados de seda, que saíam do calcanhar da sandália, enrolados sobre o tornozelo, a unirem-se num laço, e com umas tiras cruzadas, obliquas sobre a parte superior do pé, com pérolas embutidas, e o tacão louis com seis centímetros de altura. Senti-me como se usasse as sandálias de ouro de Artemis.
Ele aplaudiu cada metamorfose. A ele agradou cada metamorfose que aconteceu em mim. Por isso, sob os meus pés colocou um pedestal. Também nas sociedades antigas e nas tribos eram colocados pedestais sob os pés das mulheres, para as mulheres serem adoradas pelos homens. E elas usavam criados para as segurar quando queriam dar alguns passos sobre esses tacões de longos centímetros.

4 Comments:

Blogger Carlos Malmoro said...

Sou a visita 200, para te dizer: que grande, grande texto. Venham mais. Bjokas

18/8/06 13:17  
Blogger Maria Miriam said...

Não faço uma actualização diária mas continuo a escrever alguns textos :)
Bjs

21/8/06 23:24  
Anonymous Anónimo said...

Maria Miriam, acho que é excelente escritora, p.f. continue com estes textos simples, sensuais, inteligentes...

5/10/06 17:14  
Blogger Maria Miriam said...

Obrigada pelas palavras de incentivo.

7/10/06 18:20  

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