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Localização: Viana do Castelo, Portugal

sábado, junho 30, 2007

Santa Luzia

A minha avó sentava-se connosco junto à lareira e historiava alguns acontecimentos que fizeram parte da sua vida durante o século passado, alguns deles estavam estreitamente afeiçoados à sua terra. - Sabeis porque acontece todos os anos a romagem ao Monte de Santa Luzia? - Desde que me conheço que sei que acontece esta romagem ao Monte de Santa Luzia, num Domingo de Junho alampado ou borraceiro. Acontece desde o meu sempre, mas não quer dizer que não haja para ela um nascimento assinalado no almanaque dos séculos. Este é um sentimento que se tem em relação às realidades que nos são apresentadas como adquiridas, o sentimento de que existiram sempre.
- Vou contar-vos porque começaram as peregrinações. - A minha avó vestia, dos pés á cabeça, roupa de cor preta. Usava uma saia enfunada cujo comprimento descia abaixo dos joelhos. Sobre o cabelo grisalho, longo, amarrado com ganchos, moldado na forma de uma rodilha, colocava sempre um lenço e atava as suas asas sob o queixo. Noutros tempos, o comprimento da saia descia até aos tornozelos, os pés andavam descalços ou calçavam umas socas de madeira e usava outras cores. Ela continuava – Também vos enganais quando dizeis que a peregrinação é a Santa Luzia. A peregrinação deve-se à devoção ao Sagrado Coração de Jesus. – De facto, existe no santuário uma copiosa imagem feita em bronze de Jesus, com o coração junto ao peito e sobre a palma da mão.
O belo edifício está no cimo do Monte de Santa Luzia. A sua construção começou nos finais do século XIX. A minha avó nasceu em 1905 e em 1918 ela tinha 13 anos. Até este ano foram concluídos os trabalhos iniciados no século anterior e este ano foi o ano que viu o fim da Primeira Guerra Mundial, e o ano o que viu a princípio da pneumónica. – Chamavam-na a gripe espanhola. Percebemos que famílias inteiras morriam, casas fechavam vazias. O sino deixou de tocar pelos defuntos, porque não dava vazão a todos e porque não pretendia fazer sofrer mais aqueles que já estavam a sofrer com a sua própria doença, anunciando a cada toque mais um fim. Familiares desconheciam que o pai, a mãe, o filho, o marido, a mulher, o irmão ou a irmã morrera, e morriam pouco depois também. Ela contava que este foi um vírus poderoso e incontrolável.
Anos mais tarde, e a minha avó já não estava presente, podíamos ver, no contexto da actualidade, um documentário sobre a gripe das aves, apresentado na televisão. Diziam-nos os narradores que em toda a História e por cada século aconteceram duas a três epidemias da dimensão da pneumónica. E continuavam assegurando que o século passado ainda não havia cumprido este número. Concluíam com a agitadora dúvida: um breve adiamento ou uma generosa alteração no plano da História?
Mas, voltando à outra história, a minha avó arrematava-a – um grupo de pessoas de Viana do Castelo propôs que, se não acontecessem mais mortes pela pneumónica todas as 42 freguesias do Distrito se reuniriam anualmente e subiriam o Monte em peregrinação ao Santuário. Nesse dia morreram 24 pessoas, no dia seguinte duas e depois mais nenhuma. – Deixei escapulir um pensamento que não foi compreendido. Pensava eu que um pedido nestes termos parecia mais um contrato, com um pagamento sequente, que uma fé.
Até hoje o ritual repete-se e, para além de tudo, recordo outros dias de Santa Luzia, o convívio entre os amigos, a caminhada ascendente pela estrada, o regresso descendente pela escadaria, as cerejas negociadas com as vendedoras ambulantes no sopé do monte, e o fim da tarde na praia…

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Uma bela historia. Mais um belo post como é habito.
Também eu tenho saudades das historias contadas pelo meu avô.

Beijinhos para ti

3/7/07 16:23  
Blogger Maria Miriam said...

Obrigada Carlos.

As pessoas de mais idade têm, normalmente, muito para dar aos mais novos. Especialmente os avós...

Beijinhos para ti também

3/7/07 21:28  

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