Não quero ficar sozinho
Alguém tange a porta. Quem será?! Estranho, ninguém tange esta porta, assim.
Eu acabara de colocar o quadro na parede lisa e branca. Admirava-o. E, por meio disto, pensava nas pinturas que gosto de sentir. Gosto de sentir, por exemplo, os quadros de Paula Rêgo. Dá-me prazer olhar aqueles corpos rechonchudos e intrigantes, as suas cores, as suas formas. Gosto deles apresentados numa exposição, mas não ficariam bem nesta parede. Aqui, é diferente. Este quadro é de um pintor anónimo para quase todos. E, neste momento, seria o meu bálsamo (ou a minha inércia), mas resolvi atalhar a cerimónia e dirigir-me à porta.
Ficamos a conversar do lado de fora da casa. É o mais conveniente nestas circunstâncias. A conversa seria apenas o tempo necessário para ele me apresentar a conta da reparação de que foi o intermediário.
Sr. M. tem 75 anos e mora sozinho desde Agosto passado. A sua mulher falecera nesse mês. Desde então os seus dias são passados junto da filha, na cidade. Costumava ir até a cidade laboriosa, num daqueles carros cujo condutor não precisa ter uma carta de condução como a que eu tenho. Entretanto, o seu carro acanhado, de cor vermelho alaranjado, deixou de circular na rua. Mas eu continuava a vê-lo passar, de boleia no carro da família ou de outras pessoas, diferentes pessoas. Depois de algum tempo, já não o via de boleia, simplesmente já não o via a passar naquela rua. Até que o encontrei perto da sua casa. Nesse dia, ele desabafou – Não tenho andado muito bem. A minha filha vai sair da cidade.
Hoje ele está com a barba por fazer. Parece que o seu hálito traz a sombra de um vinho tinto carregado. E diz-me - A minha filha vai para a Suiça. Vai trabalhar para lá. Eu tenho que tratar dos negócios que tenho aqui, tenho que cuidar da casa. E da casa que é da minha neta. A minha neta que está a estudar nos Estados Unidos.
Falou sobre os estudos da neta, não pela primeira, nem segunda, nem terceira vez. Disse-o talvez pela quarta ou quinta vez. Mas hoje existiu, para além do pundonor, também uma justificação. Quis dizer que fica porque quer ficar pela neta, não por outro motivo qualquer. Mas, não obstante a circunstância, há uma coisa que o seu rosto não nega: ele não quer estar longe da família.
A sua barba por fazer e o hálito do vinho deixam-me com o sentimento de pena (dizem que não é bom o sentimento da pena). E, como que todas as energias confluindo para o cenário deste sentimento, para o desleixo da sua apresentação, surge a suspeita de a braguilha das suas calças estar aberta. Fico a pensar nisso enquanto ele fala, e eu não lhe presto a mesma atenção, a empatia que até agora persistia mostra-se confusa. Porque eu tento perceber se a braguilha está mesmo aberta. - Será o fio de luz que vem de dentro de casa, por entre a fresta da porta e se reflecte nas calças? Mas que diferença faz? Eu vou confrontá-lo, assim sem mais, com isto?
E, o meu telefone tocou. Foi o Sr. M. que tomou a iniciativa de se despedir, apressadamente. Não voltei a vê-lo.
Eu acabara de colocar o quadro na parede lisa e branca. Admirava-o. E, por meio disto, pensava nas pinturas que gosto de sentir. Gosto de sentir, por exemplo, os quadros de Paula Rêgo. Dá-me prazer olhar aqueles corpos rechonchudos e intrigantes, as suas cores, as suas formas. Gosto deles apresentados numa exposição, mas não ficariam bem nesta parede. Aqui, é diferente. Este quadro é de um pintor anónimo para quase todos. E, neste momento, seria o meu bálsamo (ou a minha inércia), mas resolvi atalhar a cerimónia e dirigir-me à porta.
Ficamos a conversar do lado de fora da casa. É o mais conveniente nestas circunstâncias. A conversa seria apenas o tempo necessário para ele me apresentar a conta da reparação de que foi o intermediário.
Sr. M. tem 75 anos e mora sozinho desde Agosto passado. A sua mulher falecera nesse mês. Desde então os seus dias são passados junto da filha, na cidade. Costumava ir até a cidade laboriosa, num daqueles carros cujo condutor não precisa ter uma carta de condução como a que eu tenho. Entretanto, o seu carro acanhado, de cor vermelho alaranjado, deixou de circular na rua. Mas eu continuava a vê-lo passar, de boleia no carro da família ou de outras pessoas, diferentes pessoas. Depois de algum tempo, já não o via de boleia, simplesmente já não o via a passar naquela rua. Até que o encontrei perto da sua casa. Nesse dia, ele desabafou – Não tenho andado muito bem. A minha filha vai sair da cidade.
Hoje ele está com a barba por fazer. Parece que o seu hálito traz a sombra de um vinho tinto carregado. E diz-me - A minha filha vai para a Suiça. Vai trabalhar para lá. Eu tenho que tratar dos negócios que tenho aqui, tenho que cuidar da casa. E da casa que é da minha neta. A minha neta que está a estudar nos Estados Unidos.
Falou sobre os estudos da neta, não pela primeira, nem segunda, nem terceira vez. Disse-o talvez pela quarta ou quinta vez. Mas hoje existiu, para além do pundonor, também uma justificação. Quis dizer que fica porque quer ficar pela neta, não por outro motivo qualquer. Mas, não obstante a circunstância, há uma coisa que o seu rosto não nega: ele não quer estar longe da família.
A sua barba por fazer e o hálito do vinho deixam-me com o sentimento de pena (dizem que não é bom o sentimento da pena). E, como que todas as energias confluindo para o cenário deste sentimento, para o desleixo da sua apresentação, surge a suspeita de a braguilha das suas calças estar aberta. Fico a pensar nisso enquanto ele fala, e eu não lhe presto a mesma atenção, a empatia que até agora persistia mostra-se confusa. Porque eu tento perceber se a braguilha está mesmo aberta. - Será o fio de luz que vem de dentro de casa, por entre a fresta da porta e se reflecte nas calças? Mas que diferença faz? Eu vou confrontá-lo, assim sem mais, com isto?
E, o meu telefone tocou. Foi o Sr. M. que tomou a iniciativa de se despedir, apressadamente. Não voltei a vê-lo.
4 Comments:
Muito bom o texto. A estória é triste, mas bela, pela forma como é contada, por quem a conta. A vida é feita destes pequenos nadas.
Parabéns.
Há muitos pequenos nadas e apetece-me, muitas vezes, agarra-los através de uma prosa. Porque eles têm um valor.
Obrigada pelas tuas palavras.
Há solidão a mais. Demasiada. Beijocas
Há solidão. Mas, quando nós estamos bem não pensamos muito nisso.
Bjs
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